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Pelé


Hoje senti no ar uma onda de afeto. Sentimento muito raro nestes tempos de lacração intimidadora. O afeto não era dirigido a mim, mas ao Pelé, que completa 80 anos hoje. Escrevi em meu facebook para homenageá-lo. E então percebi que meio mundo fez a mesma coisa. Relatos, fotos, filmes, muita coisa sobre o Rei. Foi capa de todos os jornais. Ouvi no rádio. Vai ter hoje à noite vários especiais na TV. E esse tsunami de homenagens me fez bem. Senti reverência, carinho, reconhecimento.

Ele entrou na minha vida como vilão. Eu era pequenino nos anos 1960, quando o Corinthians ficou 11 anos sem ganhar do Santos. Lembro de um dia nas férias, na Praia Grande, em que ouvíamos futebol pelo rádio quando, de repente, gol do Santos, do Pelé. Meu pai desliga o rádio e sai praguejando para a varanda. “Ele gosta de marcar contra o Corinthians...”

Vi na TV preto e branco ele cobrar o pênalti do milésimo gol. Estava todo mundo esperando aquele acontecimento histórico, segurando a respiração. Ele corre, bate no canto direito dele, esquerdo do goleiro Andrada, do Vasco, que foi bem para a bola, mas não conseguiu segurar. Pelé corre, pega a bola lá no fundo da rede. De trás do gol do Maracanã, uma multidão de repórteres invade o campo e cerca Pelé, que dedica seu milésimo gol para as “criancinhas” do Brasil. Foi ridicularizado na época.

Veio o deslumbre da Copa de 1970. O que me marcou foi o gol dele contra a Tchecoslováquia: uma matada de bola no peito depois de um lançamento de 40 metros do Gerson, colocou ela quietinha no chão, olhou o goleiro, trocou de pé e mandou no canto. Categoria, controle, precisão. Sem falar daquele chute por cobertura do meio de campo e do drible “fantasma” no goleiro uruguaio. Não foram gols, mas deixaram o mundo de queixo caído.

Nos anos 1980, visitei minha amiga jornalista Rosely Forganes, em Paris. Ela tinha acabado de voltar da Tailândia, onde andou de trem, ônibus, caminhão, elefante, barco e a pé até atingir a aldeia das mulheres girafa, aquelas de pescoço esticado por colares de ferro. Ela navegava em uma canoa no meio daquele fim de mundo quando o barqueiro perguntou de onde ela era. “Brasil”, ela respondeu. E o cara, imediatamente: “Brasil, Pelé”. Imagino que ainda seja o brasileiro mais conhecido.

Mas ao lado de tanto carinho, surgiram cobranças. Por não ter adotado uma postura mais firme contra o preconceito racial, por exemplo. Sou branco, acho difícil julgar a questão, mas criticá-lo com o olhar de hoje me parece uma cobrança e tanto. Há ainda o caso da filha não reconhecida, um comportamento injustificável.

São pontos que, afinal, mostram que Pelé não é (ou nunca foi) um santo. Mas afinal, quem é santo? Quem assume tudo? Quem enfrenta tudo? Quem desafia seus fantasmas sem medo? Quem não faz compromissos éticos, de foro íntimo, coisas que a gente racionalmente não consegue explicar – nem contar para os outros?

Pelé é, afinal, um ser humano, como todos nós. Pelo que vi, vejo e entendo, na soma de todas as coisas nutro por ele respeito e admiração. Vê-lo, recentemente, em uma cadeira de rodas, abatido, envelhecido, me deixou triste e chocado. Afinal, ele, o “atleta do século”, faz parte da minha vida. Da vida de todos nós. Aos 80 anos, Pelé continua sendo um dos maiores símbolos do Brasil. E talvez ainda seja o maior ídolo dos brasileiros. O que diz muito mais sobre nós e o mundo em que vivemos hoje do que sobre ele.

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